O SISTEMA DE CONTROLE INTERNO E EXTERNO E O REPASSE DE RECURSO DA UNIÃO PARA ESTADOS E MUNICÍPIOS NO ÂMBITO DO SISTEMA ÚNICO DE SAÚDE-SUS
Tem sido alvo de polêmica a questão do controle e avaliação, exercidos pelo Ministério da Saúde sobre os repasses de recursos financeiros para a execução descentralizada de ações e serviços de saúde pelos Municípios, no âmbito do Sistema Único de Saúde - SUS.
Os auditores do Ministério da Saúde, com freqüência, fazem impugnações quanto à natureza da despesa, que eles subdividem em atividades administrativas e atividades ambulatoriais e hospitalares?, quando somente as atividades ambulatoriais e hospitalares são admitidas pela auditoria como despesa com saúde.
Para situarmos bem o problema hoje existente no SUS, entendemos ser mais didático iniciar este estudo fazendo uma pequena digressão a respeito do sistema de saúde, uma vez que grande parte do equívoco conceitual cometido no âmbito do Sistema Único de Saúde decorre da aplicação de antigos preceitos e rotinas administrativas que vigoraram no país num passado recente.
DO PROGRAMA SUDS
A polêmica jurídico-administrativa que se trava sobre o controle e avaliação do SUS data do Programa Sistemas Unificados e Descentralizados de Saúde SUDS, instituído pelo Decreto Federal n. 94.657, de 20.7.1987.
À época, a saúde era um dos benefícios prestados pela Previdência Social aos trabalhadores a ela filiados. A Constituição de 1967 dispunha que aos trabalhadores eram assegurados, além de outros direitos, a assistência sanitária, hospitalar e médica (art. 158).
Com o advento do Programa SUDS, as bases lançadas pela Reforma Sanitária começaram a ser colocadas em prática, dando-se início à unificação das ações e serviços de saúde e à descentralização de sua gestão.
Instituído em 1987, o Programa SUDS era realizado por meio de convênios, devendo os convenentes agir em estrita consonância com as condições neles pactuadas. Um ano após, em outubro de 1988, foi promulgada a atual Constituição, que criou, sob o título de Seguridade Social, um novo sistema de direitos sociais.
Antes do SUS, a União cuidava da assistência médica e hospitalar dos trabalhadores contribuintes da Previdência Social, através do INAMPS, autarquia federal. Assim, muitos eram os hospitais próprios do INAMPS e os Postos de Atendimento Médico.
Entretanto, como os serviços próprios do INAMPS eram insuficientes para o atendimento da população, aquela autarquia contratava serviços médicos e hospitalares de entidades privadas e hospitais públicos estaduais e municipais para o atendimento do contribuinte da Previdência Social.
Os contratos e os convênios celebrados com as entidades privadas, com ou sem fins lucrativos, tinham por objeto a prestação de serviços ambulatoriais e hospitalares aos trabalhadores - previdenciários. Havia uma tabela de preços nacional e um serviço de controle e fiscalização dos contratos e convênios celebrados.
No nosso entendimento, derivam do anterior sistema previdenciário as ambigüidades conceituais; ali estão fincadas as raízes desse grande equívoco que busca reduzir as atividades de saúde a mera assistência ambulatorial e hospitalar.
Falar em saúde, na época da Constituição de 67, era falar tão somente em prestação de serviços hospitalares e ambulatoriais aos trabalhadores previdenciários. Tanto que os instrumentos de controle da prestação dos serviços contratados denominados de Boletim de Atendimento Ambulatorial BAU -- e Autorização de Internação Hospitalar AIH -- eram os únicos que existiam. Era através desses instrumentos que se controlavam, auditavam e fiscalizavam os atendimentos e os pagamentos dos procedimentos ambulatoriais e hospitalares prestados aos previdenciários pelas entidades contratadas e conveniadas, uma vez que a saúde só compreendia esse tipo de serviço.
O fato é que existiam, na época, o Ministério da Previdência e Assistência Social MPAS e o da Saúde. O primeiro só cuidava da saúde curativa dos trabalhadores previdenciários; o segundo, das ações preventivas, das campanhas de vacinação, da epidemiologia etc.
Essa bipartição do conceito de saúde ainda leva os auditores do Ministério da Saúde a só entenderem saúde como serviços hospitalares e ambulatoriais, uma vez que a auditoria tem sua origem não no Ministério da Saúde, mas sim no extinto INAMPS. É a cultura do INAMPS prevalecendo sobre o novo conceito de saúde. Eles ainda adotam o velho conceito de definir saúde como atividades curativas. E entendem que os recursos da União só se destinam, quando transferidos, ao financiamento dessas atividades.
O SUDS era um acordo e, como tal, exigia ou pressupunha uma vontade a ser exercida pelos dirigentes das três esferas de governo. Do mesmo modo, sendo um programa do governo federal, a qualquer tempo poderia ser desfeito, bastando para isso que não mais interessasse àquele governo.
O SISTEMA ÚNICO DE SAÚDE
O Sistema Único de Saúde nasceu da Constituição. Está inscrito nos artigos 6º, 196 a 200 e em bases, princípios e diretrizes constitucionais, não sendo, portanto, um programa governamental. O SUS está inserido na Seguridade Social, que conta com três áreas distintas: a saúde, a previdência social e a assistência social. A saúde e a assistência social são direitos conferidos aos cidadãos, independentemente de contribuição específica para a área, enquanto a Previdência Social só é garantida àqueles que contribuem para o Regime Nacional de Previdência Social e não mais compreende, dentre seus benefícios, serviços de saúde.
O SUS, porém, nasceu durante a execução do Programa SUDS, com ele coexistindo por longo espaço de tempo. Além disso, a sua implantação foi ainda concomitante à existência do INAMPS, extinto somente em 1993. Assim, os usos e costumes do INAMPS -- sistema de informação, sistema de pagamento, tabelas nacionais, serviço de auditoria, modo de auditar as contas e tratar o Município como prestador de serviço etc. foram incorporados ao SUS.
Em documento recente do Tribunal de Contas da União, essa constatação também existe, como podemos ver nesta afirmação do Ministro Humberto Guimarães Souto, Relatório do Programa de Ação na Área da Saúde (1999):
A descentralização, nos moldes previstos na Lei 8.080/90, chamada Lei Orgânica da Saúde, com certeza não é tarefa de fácil implementação, considerando-se, principalmente, a cultura centralizadora predominante na área até o advento da Constituição, que permaneceu com força até 1993, quando, finalmente, o INAMPS foi extinto.
Isso tudo gerou -- e ainda gera equívocos e resistências para enfrentar e aceitar o novo, principalmente dentro do sistema de auditoria, que não admite mudanças que possam retirar da esfera federal qualquer tipo de controle. Nesse passo, é importante ressaltar que os gestores do SUS não se insurgem contra a fiscalização exercida pela União sobre as suas atividades. O que se questiona é o limite desse controle, o modo como ele é exercido, a sua forma de atuação. Não se refuta o controle que deve ser exercido sempre -- a questão toda é como ele é exercido.
O SUS é um sistema que tem quatro princípios básicos constitucionais (art. 197): unificação das ações e serviços de saúde em um só sistema; descentralização da gestão dessas ações e serviços, com direção única em cada esfera de governo; participação da comunidade e atenção integral.
Todas as ações e serviços de saúde públicos integram uma rede regionalizada e hierarquizada. Nenhum serviço público de saúde pode estar fora do SUS. Não existe convênio que possa a vir integrar ao SUS um Estado ou Município. Seus serviços de saúde são o SUS, compõem o SUS, constituem o SUS.
A gestão dessas ações e serviços é exercida, autonomamente, em cada esfera de governo: União, Estado, Distrito Federal e Municípios, nos termos do art. 18 da Constituição.
DO CONCEITO DE SAÚDE
A saúde deve ser entendida, hoje, no seu mais amplo sentido, conforme conceito inscrito no artigo 2º, § 1º da Lei 8.080/93:
Art. 2º. A saúde é um direito fundamental do ser humano, devendo o Estado prover as condições indispensáveis ao seu pleno exercício.
§1º. O dever do Estado de garantir a saúde consiste na reformulação e execução de políticas econômicas e sociais que visem à redução de riscos de doenças e outros agravos e no estabelecimento de condições que assegurem acesso universal e igualitário às ações e aos serviços para a sua promoção, proteção e recuperação.
A nossa Carta maior reza que o dever do Estado de garantir a saúde a todos os cidadãos se faz mediante a instituição de políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação. Vê-se, pois, que a saúde não mais se reduz à mera assistência ambulatorial e hospitalar. A saúde é um termo que comporta a mais ampla interpretação. A miséria, a precária moradia, a renda, o transporte, o lazer etc. são condições que vão interferir na saúde da população.
Desse modo, reduzir um termo tão complexo quanto rico de interpretações ao mero conceito de assistência ambulatorial e hospitalar é voltar à velha concepção de saúde tratada na Constituição de 67, deitando fora tudo o que está inscrito na atual Constituição. Nesse sentido, toda normatização pré-constitucional que contrarie princípios constitucionais não tem mais aplicabilidade no âmbito do SUS.
O CONTROLE E A AVALIAÇÃO DO SUS: SISTEMA NACIONAL DE AUDITORIA DO SUS
O controle do Sistema Único de Saúde pelos órgãos de controle interno do Ministério da Saúde, denominado Sistema Nacional de Auditoria, estão expressos na Lei 8.080/93 e Lei 8.689/93, em seus artigos 16, XIX e 33, § 4º; e 6º, respectivamente.
O Sistema Nacional de Auditoria - SNA, regulamentado pelo Decreto Federal 1.651, de 28 de setembro de 1995, deve ter atuação descentralizada, nos termos da lei, e seu decreto regulamentador constitui um sistema nacional, abrangente das três esferas de governo.
O Ministério da Saúde, como direção nacional do Sistema Único de Saúde, é o coordenador do Sistema Nacional de Auditoria, cabendo aos Estados e Municípios relevante papel no sistema de auditoria estadual e municipal, integrando-o, sem jamais podermos admitir que a atividade de controle e avaliação dos Estados e Municípios seja supletiva em relação à União. Cada ente da federação, no âmbito do Sistema Nacional de Auditoria, tem competência própria e não subsidiária em relação à União. Até mesmo porque o SNA é um sistema de controle interno que compete a cada entidade federativa. As competências de controle e avaliação do SUS estão previstas na Lei 8.080/90 e Decreto n. 1651/95.
O Sistema Nacional de Auditoria compreende os órgãos que forem instituídos em cada nível de governo? (art. 4º), com o objetivo de exercer o controle das ações e dos serviços de saúde em cada esfera de governo gestora do SUS, de acordo com as suas atribuições. O Sistema Nacional de Auditoria compreende, assim, os controles internos federal, estadual e municipal, exercidos nos termos do art. 5º. E de outro modo não poderia ser, uma vez que no Sistema Único de Saúde a responsabilidade pela saúde foi conferida igualmente às três esferas de Governo - União, Estados e Municípios - cabendo a cada ente da federação cuidar da saúde (arts. 23, II, 24, XII e 30,VII), tendo a Constituição criado um orçamento específico para financiar a Seguridade Social, fundado na solidariedade das fontes financiadoras.
DO FINANCIAMENTO DA SAÚDE E REPARTIÇÃO DE SEUS RECURSOS ENTRE AS TRÊS ESFERAS GESTORAS DO SUS
No tocante ao financiamento da saúde pública (Sistema Único de Saúde), a Constituição definiu em seu art. 198, parágrafo único, que O sistema único de saúde será financiado, nos termos do art. 195, com recursos do orçamento da seguridade social, da União, dos Estados, do Distrito Federal, dos Municípios, além de outras fontes?, dispondo a Lei Orgânica da Saúde, em seus arts. 31 e 33, que o orçamento da Seguridade Social destinará ao Sistema Único de Saúde-SUS, de acordo com a receita estimada, os recursos necessários à realização de suas finalidades, tendo em vista as metas e prioridades estabelecidas na Lei de Diretrizes Orçamentárias.
Esses recursos devem ser depositados nos fundos de saúde de cada esfera de governo, e movimentados sob fiscalização dos respectivos conselhos de saúde, tendo, ainda, os arts. 34 e 35 determinado como os recursos da Seguridade serão transferidos, primeiramente, ao Fundo Nacional de Saúde e, depois, aos fundos de saúde dos Estados, Distrito Federal e Municípios.
A Lei 8.142/90, em seus arts. 2º e 3º, reza que os recursos do Fundo Nacional de Saúde destinam-se, dentre outras coisas, à cobertura das ações e serviços de saúde a serem implementados pelos Municípios e Estados, devendo ser repassados de forma regular e automática, de acordo com critérios epidemiológicos, de organização de serviços e populacionais.
Também a Lei Orgânica da Seguridade Social (Lei 8.212/91) tratou do assunto, dispondo sobre as transferências de recursos da Seguridade Social para o Fundo Nacional de Saúde.
Não se pode perder de vista, ainda, que a Constituição, em seu art. 30, VII, determinou que a União deve apoiar o Município, tanto técnica como financeiramente, na manutenção de serviços de saúde.
Se a Constituição determina que a saúde é responsabilidade das três esferas de Governo e que a Seguridade Social será financiada por impostos e contribuições sociais, cabendo à União transferir recursos para o financiamento desse sistema integrado (art. 198, parágrafo único), e uma vez que as fontes mencionadas nos incisos I, II e III do art. 195 são arrecadadas exclusivamente pelos cofres federais, deve-se entender que, implicitamente, há uma repartição constitucional desses recursos, pois parte dessas receitas deve ser destinada aos entes federativos que têm responsabilidade pela saúde pública.
O próprio Tribunal de Contas da União tem defendido que a descentralização pressupõe, além da transferência de competências, a transferência de recursos necessários a operacionalização das novas atribuições e que a lei contempla esta transferência que deve ser realizada de forma direta e automática (fundo a fundo); afirma, ainda, que a questão do controle, avaliação e auditoria dos recursos alocados à saúde comporta interpretações divergentes no que se refere à competência de cada instância governamental (Ministro Humberto G. Souto, Relatório de 1999).
Nesse passo, podemos afirmar, como temos feito em diversas oportunidades, que os recursos arrecadados pela União, que devem financiar a saúde nos Estados e Municípios, pertencem aos planos e programas nacionais de saúde que, nos termos do art. 198, devem ser executados de forma descentralizada, com direção única em cada esfera de governo.
Ressalte-se, ainda, que um dos critérios de repartição desses recursos é o populacional e não o de uma simples tabela de procedimentos ambulatoriais e hospitalares como muitos têm defendido. A Lei 8.080/90, em seu art. 35, enumera esses critérios, determinando em seu § 1º que metade dos recursos destinados aos Estados e Municípios será distribuída segundo o quociente de sua divisão pelo número de habitantes, independentemente de qualquer procedimento prévio, dispondo, ainda, o art. 3º, §§ 1º e 2º, da Lei 8.142/90 que enquanto não for regulamentada a aplicação dos critérios previstos no art. 35, da Lei 8.080/90, será utilizado exclusivamente o critério populacional, cabendo aos Municípios pelo menos 70% desses recursos.
A descentralização das responsabilidades pela saúde entre os entes federativos e a obrigatoriedade de a União transferir recursos para o seu custeio é fato inquestionável. Tanto que a Lei 8.142, de 28.12.90, no parágrafo único do seu art. 4º, determina que, quando os Estados e Municípios não atenderem aos requisitos estabelecidos no caput, os recursos destinados àqueles entes políticos serão administrados, respectivamente, pelos Estados ou pela União.
As ordens de recolhimento emitidas pela auditoria federal contra os Municípios não encontram guarida no SUS, pois os recursos do Município destinados à saúde não podem retornar aos cofres do Fundo Nacional de Saúde visto que pertencem a planos e programas municipais. Se o recurso foi gasto na saúde, não haveria como o fundo de saúde estornar esta despesa. O que pode ocorrer é a utilização dos recursos em áreas municipais que não a saúde; nesse caso, os recursos devem sair do tesouro municipal para o fundo de saúde municipal, a fim de que seja providenciada sua utilização adequada.
O próprio Tribunal de Contas da União tem se manifestado no sentido de que os recursos destinados aos Estados e Municípios estão sob a administração do Ministério da Saúde, o que significa dizer que os mesmos não lhe pertencem, estando apenas sob a sua administração.
Vejamos.
As Leis 8.080/90, art. 35 e 8.142/90, art. 3º, caput, dispõem que os repasses financeiros do SUS, administrados pelo Ministério da Saúde, aos Estados, Distrito Federal e Municípios, deverão ser automáticos e regulares, obedecida a combinação dos seguintes critérios para o estabelecimento dos valores, perfil demográfico da região; perfil epidemiológico da população a ser coberta; características quantitativas e qualitativas da rede de saúde na área; desempenho técnico, econômico e financeiro no período anterior; níveis de participação do setor saúde nos orçamentos estaduais e municipais; previsão do plano qüinqüenal de investimentos da rede; ressarcimento do atendimento a serviços prestados para outras esferas de governo. (grifamos) (Relatório do Programa de Ação na Área da Saúde Diagnóstico Ministro Humberto Guimarães Souto 1999).
Nessa conformidade, claro está que não pode haver, no âmbito do SUS, ordens de recolhimento de recursos aplicados na saúde, de acordo com o poder discricionário do administrador.
O desvio de finalidade e a malversação de recursos públicos devem ser punidos, na forma da lei, com apuração de responsabilidade do infrator e devolução dos recursos aos cofres da SAÚDE do Município, ou seja, ao Fundo Municipal de Saúde para ser reinvestido.
Nesse passo, é importante lembrar que sob pena de se inverterem os papéis e os atores, compete ao administrador, ao atuar a lei de ofício, a discricionariedade para a emissão de juízos de conveniência e oportunidade para a prática de determinados atos administrativos.
LÚCIA VALLE FIGUEIREDO trata do tema, enfatizando a linha divisória entre atos vinculados e atos discricionários, assim:
De seu turno, tem-se entendido por competência discricionária a que possibilita ao administrador, no caso concreto, escolher, dentre as plúrimas soluções sugeridas pela hipótese normativa, a melhor, segundo juízo de oportunidade e conveniência.
Estabeleceu-se, destarte, no que tange ao controle, nítido divisor de águas entre atos emanados dentro da competência vinculada, quando só caberia à Administração Pública a rigorosa subsunção, e os atos chamados discricionários, em que a concreção da norma ficaria a critério de conveniência e oportunidade administrativa. (Curso de Direito Administrativo?, Malheiros Editores, 1994).
A auditoria federal ao impugnar despesas realizadas na saúde municipal, desde que observados os princípios que regem a administração pública, está a invadir o espaço do Administrador que utiliza os seus próprios critérios de escolha da providência a ser adotada, fundado em razões de conveniência e oportunidade, quando lhe determina a natureza do gasto. No convênio, admite-se essa fiscalização quanto ao cumprimento das finalidades conveniais, mas, no SUS, isso é inadmissível, cabendo ao auditor verificar a conformidade do gasto com os planos e programas municipais, consubstanciados no plano de saúde aprovado pelo Conselho Municipal.
Pode parecer exaustiva a afirmação de que os recursos do Ministério da Saúde alocados como transferências para os Estados e Municípios, devam ser depositados no fundo de saúde estadual ou municipal para a execução global do plano de saúde previamente aprovado pelas instâncias deliberativas do SUS.
É evidente que os recursos do SUS, arrecadados pela União, destinam-se ao financiamento da saúde pública nacional e não federal. Assim sendo, os recursos transferidos pela União para os Estados e Municípios devem somar-se aos seus próprios recursos destinados à saúde para a execução de seus planos de saúde.
CONCLUSOES
Hoje já não restam dúvidas quanto à descentralização da responsabilidade pela saúde e quanto à obrigatoriedade da União -- arrecadadora principal dos recursos que financiam a saúde, nos termos do art. 195 -- de transferir recursos para as demais esferas gestoras do SUS, mas a polêmica e os embates administrativos e jurídicos existentes em torno da questão da discricionariedade dos gastos continuam extenuando os gestores do SUS, que têm suportado toda espécie de controle. E diante da estrutura do financiamento da saúde, da forma de repasse e execução de ações e serviços do SUS, o controle desses recursos jamais poderá se submeter às normas federais referentes aos convênios.
As transferências financeiras no âmbito do SUS, por terem a característica de transferência obrigatória (não sujeitas, portanto, à celebração de convênio ou qualquer outro instrumento congênere art. 70, VI, da CF), devem ser fiscalizadas pelos órgãos competentes das esferas gestoras dos recursos.
Estados e Municípios devem orçamentar os recursos transferidos, aplicando-os aos planos de saúde aprovados pelos Conselhos de Saúde respectivos, e prestar contas das despesas realizadas ao Tribunal de Contas do Estado, ou do Município, onde houver, e encaminhar ao Ministério da Saúde o relatório de gestão, mencionado no art. 4º, IV, da Lei 8.142/90.
É, também, competência legal dos Estados e Municípios fiscalizar os serviços de saúde. É o que determina a Lei 8.080/90 (arts. 16, XVII, 17, II, XI e 18, I, X e XI), e não importa se esses serviços foram executados com receitas próprias dos Estados e Municípios ou se transferidos pela União.
Não se trata de negar a competência da União no acompanhamento e fiscalização dos recursos transferidos, mas, sim, fixar os seus exatos limites, sem permitir que prevaleçam práticas equivocadas, ultrapassadas, errôneas, retiradas, como se disse atrás, de legislação não aplicável ao SUS, por derrogada pela Constituição de 88.
Temos defendido que a forma correta do acompanhamento desses gastos é a utilizada para o controle dos recursos tributários, que são repartidos pela União entre Estados e Municípios, que são os fundos de participação dos Estados e Municípios (FPM e FPE).
Se os recursos do FPM e FPE, arrecadados pela União e transferidos aos Estados e Municípios, são fiscalizados pelos órgãos de controle interno da esfera recebedora dos recursos e pelo Tribunal de Contas dos Estados, cabendo ao Tribunal de Contas da União acompanhar a repartição dessas receitas, sem contudo exercer o controle sobre os seus gastos, o mesmo deveria ocorrer com as transferências da saúde, que têm a mesma feição das partilhas constitucionais, ainda que essa repartição não esteja expressa na seção VI, do título VI da Constituição, mas implícita em normas e princípios constitucionais e legais sobre a Seguridade Social e a área da saúde.
Assim seria um contra-senso conferir aos auditores do Ministério da Saúde a responsabilidade pela conferência de todos os gastos com a saúde no país inteiro, afora a ilegalidade e o desrespeito à descentralização da fiscalização prevista no Sistema Nacional de Auditoria do SUS.
Essa forma de controle executada pelos auditores federais não faz sentido e contraria os princípios da descentralização política, uma vez que amesquinha a autonomia do Estado e do Município. Tais normas não podem suplantar os ditames de leis específicas sobre a saúde, principalmente as referentes ao planejamento e aos planos de saúde. Instruções normativas e decretos federais que regulam repasses conveniais não podem se sobrepor às normas específicas do SUS, não cabendo a sua aplicação às transferências de recursos da União para os Estados e Municípios.
Se os Municípios são responsáveis pela saúde, devendo contar com plano de saúde aprovado pelo Conselho de Saúde local, e se os planos de saúde são a base das atividades e programações de cada nível de direção do SUS, como entender que as transferências da União não possam integrar o orçamento da seguridade social do Município como receita destinada a cobrir a execução do plano de saúde municipal?
Se alguma coisa mudou profundamente neste País foi exatamente a saúde, que mantém estruturas claras de uma verdadeira federação. A concepção constitucional do SUS compreende todos os elementos de um verdadeiro federalismo cooperativo: descentralização das ações e dos serviços; cooperação técnica e financeira da União para com Estados e Municípios e dos Estados para com os Municípios; participação da sociedade na definição da política de saúde, através dos conselhos de saúde e das conferências de saúde; comissões intersetoriais; planejamento ascendente: compatibilização dos planos de saúde municipal e estadual com o planejamento nacional; solidariedade na divisão dos recursos da seguridade social e suas três áreas: previdência, saúde e assistência social; participação da iniciativa privada no SUS; comissões intergestores bilaterais; comissões intergestores trilaterais.
Não há como entender que um avanço constitucional desse porte seja barrado por entendimento e ações burocráticas de auditores federais, ensejando os mais diversos temores nos gestores do SUS, com promoção equivocada de ações judiciais, via Ministério Público Federal, tomada de contas especial, com devolução de recursos gastos efetivamente na saúde, no plano de saúde, só que fora das normas reguladoras de convênios federais.
Esse tipo de ação é um retrocesso numa área de difícil execução, que conta com poucos recursos e muitos problemas. Isto posto, o desvio de finalidade e a malversação de recursos públicos devem ser punidos na forma da lei, sem contudo penalizar a população, pois a auditoria, ao emitir ordens de recolhimentos pune a população e promover o enriquecimento sem causa da União.
A única exceção admissível para a aplicação, aos Municípios, das regras referentes aos convênios federais, seria para aqueles recursos da União destinados especificamente ao cumprimento de um determinado programa pactuado com o Município, com prazo e objeto certo, como é o caso, por exemplo, de recursos que se destinam a melhorar um ambulatório, a construção de um hospital, a aquisição de determinados equipamentos etc.
À exceção desses casos específicos, as transferências gerais da União para os Estados e Municípios financiarem a saúde devem integrar o orçamento da seguridade social do ente recebedor do recurso e ser objeto de controle interno e externo, na forma do disposto no artigo 75 da Constituição, ou seja, será exercido pela Assembléia Legislativa, com o auxílio do Tribunal de Contas do Estado, e pelos órgãos de controle interno de cada esfera gestora de governo.
E o argumento do convênio cansativo e usado à exaustão pelos auditores federais não pode prevalecer sobre o texto da Lei 8.142/90, que claramente menciona que os recursos referidos no inciso IV do art. 2º desta Lei, serão repassados de forma regular e automática para os Municípios, Estados e Distrito Federal, de acordo com os critérios previstos no art. 35 da Lei 8.080/90.
Além do mais, os auditores federais se equivocam ao afirmar, cometendo um grande erro conceitual, que o Município é prestador de serviços de saúde para o Ministério da Saúde. Isso significa dizer que os velhos conceitos de saúde continuam permeando o novo sistema.
Com o SUS, o Ministério da Saúde não contrata serviços do Município. Ele tem a obrigação legal de transferir recursos para a cobertura de atividades de saúde de responsabilidade do Município. Ele não transfere recursos financeiros para o Município executar um serviço da União que, por convênio, foi descentralizado para o Município. O Município cuida da saúde pública por determinação constitucional e legal. E recebe recursos da União para a execução desses serviços que devem estar previstos no plano de saúde municipal.
O parágrafo primeiro do artigo 36 da Lei 8.080/90 estatui que Os planos de saúde serão a base das atividades e programações de cada nível de direção do Sistema Único de Saúde SUS e seu financiamento será previsto na respectiva proposta orçamentária complementando, o seu parágrafo segundo diz que é vedada a transferência de recursos para o financiamento de ações não previstas nos planos de saúde, exceto em situações emergenciais ou de calamidade pública, na área da saúde.
Basta o plano de saúde e o cumprimento dos demais requisitos previstos no artigo 4º da Lei 8.142/90 para que o Município possa receber os recursos financeiros que lhe são destinados pela União. E o controle mencionado no artigo 33, § 4º da Lei 8.080/90 sobre a aplicação dos recursos financeiros deverá ser feito mediante relatórios de gestão que permitam verificar se os recursos repassados foram aplicados na programação aprovada, lembrando que a programação é o plano de saúde e a aprovação é a do conselho de saúde.
O acompanhamento que o auditor federal pode e deve fazer a respeito da aplicação dos recursos do SUS, transferidos pela União, diz respeito à verificação da conformidade do gasto com a programação aprovada. É isso que está na lei.
Nessa mesma linha, foi a decisão do MM. Juiz da 1ª Vara da Fazenda Pública do Estado de São Paulo que julgou improcedente a ação civil pública proposta pelo Ministério Público contra Carlos Neder, Secretário de Saúde do Município de São Paulo, gestão Luiza Erundina, por entender que compete ao Município decidir a natureza do gasto dos recursos transferidos, desde que, é claro, seja aplicado na saúde.
Entendeu aquele respeitável Magistrado que não houve desvio nem improbidade administrativa na aplicação dos recursos da União transferidos ao Município, nem dano ao erário público por ter o Secretário adquirido bens para setores administrativos da sede da Secretaria Municipal da Saúde que, segundo os auditores federais, deveriam ter sido pagos com recursos do orçamento fiscal do Município.
Transcrevemos aqui trecho de sua sentença:
Assim, na espécie, e com o devido respeito a entendimento divergente, forçoso reconhecer que os fatos imputados ao réu não autorizam a configuração de improbidade administrativa e/ou de violação aos princípios constitucionais da legalidade e da moralidade.
Quanto ao disposto na Lei 8.080/90 que instituiu o Sistema Único de Saúde tal diploma apenas estabeleceu normas gerais de atuação do SUS, bem como a competência das várias entidades estatais e a transferência dos recursos do ?Fundo Nacional de Saúde aos Estados e Municípios, de modo que ao consignar, em seu artigo 36, parágrafo 2º, a vedação da transferência de recursos para o financiamento de ações não previstas nos Planos de Saúde, nada mais fez do que limitar a aplicação de tais recursos às ações e serviços, porém, sem definir, de modo preciso e taxativo, o que deva ser entendido como ações de saúde, ou financiamentos específicos dessa área, a dispensar, assim, qualquer esforço de interpretação do executor da lei. (grifo nosso).
No tocante a Lei federal n. 8.142/90, que veio a estabelecer os requisitos necessários para a transferência de recursos aos Estados e Municípios, o disposto no parágrafo único de seu artigo 2º, ao consignar: Os recursos referidos no inciso IV deste artigo destinar-se-ão a investimentos na rede de serviços, à cobertura assistencial ambulatorial e hospitalar e às demais ações de saúde.
No entanto, este diploma também nada esclarece, de modo taxativo, a respeito do que deva ser considerado como demais ações de saúde?. (grifo nosso).
Quanto à lei federal n. 4.320/64, com normas gerais sobre orçamento, nenhuma inovação depreende-se do disposto em seu artigo 71, que apenas ressalta a vinculação das receitas do chamado fundo especial à realização de determinados objetivos e serviços, facultando, por outro lado, a adoção de normas peculiares de aplicação.
Logo, considerando-se a imprecisão da legislação em exame no tocante ao que deve ser considerado como ações e serviços de saúde, ou financiamentos específicos de tal área, forçoso admitir que razão assiste ao réu, em sua contestação, ao salientar ter sido atribuído tanto à União, como aos Estados e Municípios, observadas as normas gerais de atuação do SUS, definir os limites e/ou a realização e financiamentos de tais ações e serviços de saúde, cada qual no âmbito de sua competência.
Nada existe nos atos, de concreto, a infirmar essa declaração, sendo que a necessidade ou não de material adquirido, insere-se no âmbito do mérito administrativo, não comportando, assim, interferência do Judiciário.
Por outro lado, a referida descentralização, em tese, estaria a atender não só o disposto na Lei 8.080/90, como também na Lei Municipal n. 10.830/90 e, principalmente, as diretrizes do artigo 198 da Constituição Federal.
Ademais, as testemunhas arroladas pelo ora réu, não contraditadas pelo autor, e todas com experiência na Administração Pública, na área da Saúde, confirmaram a legitimidade do pagamento de material de consumo e permanente com recursos do Fundo Municipal de Saúde.
Assim sendo, em que pesem as alegações do Ministério Público, bem como o relatório da prova pericial que deu ensejo à Instauração do Inquérito Civil n. 19/96, tenho que os elementos dos autos não autorizam a configuração da conduta de improbidade administrativa atribuída ao réu, não se podendo afirmar que procedeu, na aquisição e pagamento de maquinário, com violação aos deveres de honestidade, imparcialidade, legalidade e lealdade às instituições, consoante o disposto na Lei n. 8.429/92.
Temos, ainda, a manifestação do TCU, no Relatório aqui mencionado, a respeito da definição da natureza das despesas a serem realizadas pelos Municípios com os recursos das transferências da União.
Uma questão que tem suscitado muitas dúvidas entre os gestores locais do SUS e entre os próprios gestores federais, diz respeito às despesas que podem ser enquadradas como de financiamento das ações e serviços de saúde, em atendimento ao parágrafo único, art. 2º, da Lei 8.142/90.
As principais dúvidas levantadas referem-se ao pagamento de pessoal e despesas administrativas, tais como aluguéis e contas telefônicas; alguns gestores alegam que o texto legal ampara que tais dispêndios sejam realizados com recursos do SUS.
Esses questionamentos surgiram em decorrência da amplitude dos termos da lei: não há definição clara acerca das ações que podem ser implementadas com aqueles recursos. Segundo os analistas existe um vazio normativo nessa área, uma vez que não há detalhamento sobre as ações e os serviços englobados, nem disciplinamento das despesas passíveis de serem realizada
Em que pese o entendimento dos analistas, afirmamos que não existe um vazio legal a respeito da natureza dos gastos com os recursos das transferências. Elas se destinam a custear despesas previstas no plano de saúde, conforme determina o artigo 36, § 1º, da Lei 8.080/90, in verbis:
Art. 36.
§ 1º. Os planos de saúde serão a base das atividades e programações de cada nível de direção do Sistema Único de Saúde- SUS e seu financiamento será previsto na respectiva proposta orçamentária?.
E o disposto no § 2º do referido artigo encerra qualquer tipo de discussão a respeito da natureza dos gastos quando dispõe que?É vedada a transferência de recursos para financiamento de ações não previstas nos planos de saúde, exceto em situações da calamidade pública, na área da saúde?.
Desse modo, temos que os recursos das transferências destinam-se a financiar ações e serviços de saúde previstos no plano de saúde. Se o plano de saúde prevê como deve prever todas as atividades existentes na Secretaria da Saúde, e dispõe sobre o seu financiamento na proposta orçamentária, fazendo constar as transferências financeiras como fonte de recurso que irá cobrir todas as despesas previstas, não pode haver questionamento por parte do Ministério da Saúde quanto à natureza do gasto constante do plano de saúde, sob pena de ferir a autonomia do Município no cumprimento de suas atribuições constitucionais e interferir no poder discricionário do administrador.
Do que foi afirmado, podemos concluir que não há um vácuo na legislação. Ela já deu o comando necessário. E não poderia ser de outro modo, sob pena de invadir a competência legislativa e administrativa do Estado e do Município na área da saúde.
Se a competência da União para legislar sobre saúde é concorrente com a do Estado, apenas normas gerais podem ser editadas pela União, não lhe cabendo expedir normas mais detalhadas, competência reservada ao Estado. A União edita normas gerais e o Estado suplementa a legislação nacional, cabendo ao Município suplementar a legislação federal e estadual, sempre que o interesse local assim o exigir, dentro dos limites de sua competência material (arts. 24, XII, §§ 1º, 2º da CF).
A Lei 8.080/90, bem como a Lei 8.142/90, ambas de normas gerais sobre saúde, de abrangência nacional, não poderiam descer a detalhes de interesse peculiar do Estado e do Município, sob pena de exorbitar sua competência de só legislar sobre normas gerais. A legislação exaustiva é competência do Estado e a de interesse local do Município (art. 30, I, II e VII, da CF). Ora, quem tem os fins a cumprir tem que ter os meios que lhe garantam a execução desses fins.
Alguns auditores tem afirmado que o disposto no art. 10 do Decreto - lei 200/67 é aplicável ao SUS. Ora, isto é de um absurdo ímpar. Reduzir o SUS a mero programa federal de descentralização, realizado mediante convênio, é voltar à época do SUDS e negar o SUS. Tanto que o art. 10, do Decreto-Lei 200, foi utilizado como suporte jurídico para a criação do Programa SUDS. Basta verificar a Exposição de Motivos encaminhada ao Presidente da República.
Podemos, pois, concluir este estudo afirmando que o Município, quando utiliza recursos das transferências da União no Sistema de Saúde Municipal, em atividades previstas no seu plano de saúde, aprovado pelo conselho de saúde local, emprega adequadamente as verbas públicas. Detalhes sobre a necessidade de adquirir este ou aquele material, realizar esta ou aquela despesa se todas elas estão dentro da atividade principal que é a saúde -- são atos que se inserem no âmbito do mérito administrativo, do poder discricionário do administrador, não comportando, pois, interferência dos agentes de controle interno e externo, tampouco do Poder Judiciário.