Já demostramos a ilegalidade da Portaria nº 9 de 13 de janeiro de 2000, emitida pela Secretaria de Assistência à Saúde do Ministério da Saúde. É uma portaria que, na sua essência, foi feita para desresponsabilizar o Ministério da Saúde da imensa defasagem a menor dos valores atribuídos aos procedimentos básicos de saúde.
Pela portaria, estes valores não constarão mais da Tabela Nacional do SUS cabendo, daqui em diante, aos municípios e estados estabelecerem estes valores. Antes de mais nada, a portaria está se colocando acima da lei 8080 que determina que o Ministério da Saúde estabeleça estes valores. Parece uma questão sem importância, mas atrás disto está a grande questão de descarregar a culpa de uma tabela iníqua sobre municípios e estados. Entretanto isto já está dito. Apenas reforçamos a ilegalidade de uma portaria estar contrariando a norma maior da lei 8080, e os desvios conseqüentes. Agora estamos vendo mais um malefício desta portaria quando coloca sem contextualização a questão da terceirização já garantida na 8080. Isto está levando a que pessoas tenham uma interpretação errônea.
O texto da portaria, entre outras coisas, diz: “Os municípios que necessitem comprar, em caráter complementar, serviços de terceiros, para a ampliação da oferta de procedimentos que compõem o PAB, deverão definir, de acordo com a legislação em vigor:... programação físico-financeira dos serviços a serem comprados; as normas, rotinas etc e a forma de pagamento.” Baseado nisto, descontextualizado diferentemente do que está na 8080, existem pessoas, de má ou boa fé, interpretando este artigo como sendo a autorização do Ministério da Saúde para que se faça a terceirização dentro dos serviços próprios, público-estatais. O que está bem claro na CF na Seção Saúde é que “as ações e serviços de saúde... devendo ser sua execução feita diretamente ou através de terceiros...(cf.197).” e, logo a seguir, “ as instituições privadas poderão participar de forma complementar , do sistema único de saúde...”.
A portaria, neste particular é inócua, pois a 8080 , que por ser lei de âmbito nacional, é muito maior que uma portaria e já tinha deixado clara a mesma questão na frase: as ações podem ser feitas por terceiros , além do público estatal, mas em caráter complementar. Mas a frase, que deveria ser inócua, se tornou também maléfica quando usada fora do contexto. Quando a portaria da SAS-MS afirma “os municípios que necessitem comprar, em caráter complementar, serviços de terceiros” tem-se que entender aí o mesmo que está na 8080 e refere-se à compra complementar realizada no próprio do terceiro, com seus meios . Exatamente quando o SUS compra, como comprou, serviços de saúde complementares aqueles que ele próprio faz.
A compra se dá nas Santas Casas, Hospitais Filantrópicos e Beneficentes, de preferência, e nos privados lucrativos, quando esgotada a capacidade do público e do filantrópico. A compra de serviços dentro do próprio público é limitada igualmente à complementariedade, nunca se abrindo mão da gestão plena de tudo que se faz. Existe todo o capítulo II da Lei 8080, a partir do art. 24 explicitando o que seja a participação complementar : “quando as suas disponibilidades forem insuficientes para garantir a cobertura assistencial à população de uma determinada área, o SUS poderá recorrer aos serviços ofertados pela iniciativa privada.” Não se trata de autorização para terceirização dos serviços públicos, no próprio estatal, mas de contratação de “serviços (já) ofertados pela iniciativa privada” (art.24), que “tem proprietários, administradores e dirigentes de entidades e serviços” (art.26). Se não bastasse a clareza da lei (apenas pleonásticamente lembrada por uma portaria ilegal) temos como jurisprudência parecer do ministério Público Federal, Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão. Dr. Wagner Gonçalves, Subprocurador Geral da República, Procurador Federal dos Direitos do Cidadão, em extenso parecer de 27 de maio de 1998 foi suficientemente claro na condenação de todos os casos de terceirização maciça que vem acontecendo Brasil afora no setor saúde. Dele extraímos alguns tópicos. "É importante realçar que a Constituição, no dispositivo "as instituições privadas poderão participar de forma complementar do sistema único de saúde, segundo diretrizes deste, mediante contrato de direito público ou convênio, tendo preferência as entidades filantrópicas e as sem fins lucrativos." (art. 199, § 1º), permite a participação de instituições privadas "de forma complementar", o que afasta a possibilidade de que o contrato tenha por objeto o próprio serviço de saúde, como um todo, de tal modo que o particular assuma a gestão de determinado serviço. Não pode, por exemplo, o Poder Público transferir a uma instituição privada toda a administração e execução das atividades de saúde prestada por um hospital público ou por um centro de saúde; o que pode o Poder Público é contratar instituições privadas para prestar atividades-meio, como limpeza, vigilância, contabilidade, ou mesmo determinados serviços técnico-especializados, como os inerentes aos hemocentros, realização de exames médicos, consultas, etc.; nesses casos, estará transferindo apenas a execução material de determinadas atividades ligadas ao serviço de saúde, mas não sua gestão operacional.” "A Lei nº 8080, de 19.9.90, que disciplina o Sistema Único de Saúde, prevê, nos arts. 24 a 26, a participação complementar, só admitindo-a quando as disponibilidades do SUS "forem insuficientes para garantir a cobertura assistencial à população de uma determinada área", hipótese em que a participação complementar "ser formalizada mediante contrato ou convênio, observadas, a respeito, as normas de direito público" (entenda-se, especialmente, a Lei n° 8.666, pertinente a licitações e contratos). Isto não significa que o Poder Público vai abrir mão da prestação do serviço que lhe incumbe para transferi-la a terceiros; ou que estes venham a administrar uma entidade pública prestadora do serviço de saúde; significa que a instituição privada, em suas próprias instalações e com seus próprios recursos humanos e materiais, vai complementar as ações e serviços de saúde, mediante contrato ou convênio.
Vale a pena, para concluir, trazer a visão jurídica e experiente o saudoso Hely Lopes de Meireles: "Serviços próprios do Estado são aqueles que se relacionam intimamente com as atribuições do Poder Público (segurança, polícia, higiene e saúde públicas etc) e para a execução dos quais a Administração usa da sua supremacia sobre os administrados. Por esta razão, só devem ser prestados por órgãos ou entidades públicas, sem delegação a particulares. Tais serviços, por sua essencialidade, geralmente são gratuitos..." Hely Lopes de Meireles in Direito Administrativo Brasileiro, Ed. RT, 16a ed., págs.291/2.
Tem muita coisa a se discutir na terceirização de serviços de saúde. Terceirização completa como compra de serviços de terceiros, prestado por eles, com seus meios, não é nenhuma novidade. O INPS/INAMPS historicamente terceirizou quase setenta por cento de seus serviços, mormente os hospitalares. Houve na época da ditadura militar uma política intencional comandada por Delfim Neto. Diante da falta de vontade política de se expandirem os serviços previdenciários, dizem que Delfim Neto fez uma proposta ao setor privado de saúde mais ou menos nos seguintes termos “construam hospitais com recursos que vamos disponibilizar com juros e correção subsidiados (FAS) e, depois, já lhes garanto a possibilidade de pagamento do financiamento através do credenciamento junto ao INPS/INAMPS para prestar serviços de saúde,” Assim se pensou, assim se fez. Inúmeros hospitais foram construídos com recursos do FAS e pagaram com parte dos serviços prestados terceirizadamente suas contas. Uns prestaram e não o fazem mais e outros ainda prestam. Quanto à terceirização de serviços nos próprios públicos há muito questionamento. Os maiores argumentos são falhos, sem consistência. Não resistem à crítica mais superficial. Precisam ser desmontados um a um. Argumenta-se que fica mais barata a contratação de pessoal? Quero entender como, pois se alguém é colocado no meio como terceiro e vai ter sua remuneração, esta será tirada do comprador, ou do comprador e dos trabalhadores. Impossível outra matemática. Ou se paga mais o tomador do serviços ou se paga menos aos trabalhadores. Serão mais baratos os encargos econômicos? Se alguns direitos trabalhistas passam a não existir, alguém será lesado como empregado do terceiro ou cooperado, sem férias, sem 13o , sem FGTS, sem licença doença ou maternidade e outra coisas mais. Ou então se faz a opção errônea do governo lesar o próprio governo: aqui opta por dispensar da parte patronal dos encargos trabalhistas e , logo a seguir, lamenta-se a falta de recursos públicos! Argumenta-se que se tem maior produção, que o trabalhador terceirizado não falta, ou se falta não se paga no contrato; que cumprem horário etc. Isto é um problema comum à administração pública e privada. Tem que ser enfrentado por diversos meios. Está muito mais ligada ao homem que à instituição.
As organizações privadas costumam sofrer do mesmo problema, principalmente quando relacionadas ao público. Tenho visto terceirizações, Brasil afora, onde profissionais de saúde “terceirizados” continuam ganhando por quatro horas e trabalhando só uma! Aí vem o contra-argumento: não precisamos controlar, isto será feito pelo terceiro! Engodo: os terceirizados precisam ser controlados e muito bem. Que o digam os privados e públicos que vem enfrentado há tempos a máfia das horas cobradas a mais nos serviços de limpeza, segurança, alimentação etc. Para vigiar a terceirização tem-se que montar uma verdadeira “swat” para impedir as inúmeras fraudes. Tão caro fica este controle que daria para dar aumento de salário aos próprios servidores públicos, ou contratar mais gente. Existem, entretanto, setores, dentro da administração pública, que podem e devem ser terceirizados buscando-se a melhor relação custo benefício e ligado, muitas vezes a um campo de conhecimento mais especializado. Nada há contra terceirização de manutenção e conserto de máquinas, aparelhos, computadores etc. Isto se torna mais eficiente e barato dada à especificidade de equipamentos e conhecimentos para tanto.
De outro lado não confundir a terceirização da indústria que o faz de produtos materiais, partes e componentes de fácil aferição da qualidade e muitas vezes, de excelente relação custo benefício. Tem-se que buscar o equilíbrio entre a terceirização eficiente e a terceirização entreguista. Até onde vai o limite da terceirização para o setor público? O limite legal é a terceirização de atividades meio: limpeza, alimentação, vigilância, manutenção de máquinas e equipamentos etc.
A ruptura deste limite fica por conta de alguns contratos por notória especialização ou por período determinado para questões técnicas, específicas tipo consultorias etc. Mais recentemente a abertura para as Organizações Sociais, que tecnicamente está autorizada e politicamente questionada. Se esta terceirização descrita é legal para os demais setores, para o de saúde é terminantemente proibida pela própria CF e pela Lei 8080, mostrada no parecer acima citado. Até onde vai o limite da terceirização para o setor público específico de saúde? Terceirização de atividades meio e atividades esporádicas por notória especialização ou por contrato de serviços especializados. Ponto final. Na construção do SUS existem vários desafios. O maior deles é o desafio de sermos retos em nossas intenções e propósitos e, principalmente, na ação final. Podemos errar, atributo humano universal, mas, se tivermos a retidão de intenções e propósitos, a correção da ação será a conseqüência natural.