Lenir Santos
I - Introdução; II - Processo Seletivo e Concurso Público; III - Regulamentação do regime jurídico e das atividades do agente; IV - Perda do cargo ou emprego público; V - Contratação direta e processo seletivo; VI - Convalidação de vinculo empregatício; SumárioVII - Conclusões.
Resumo: este artigo analisa a Emenda Constitucional n. 51/2006 que altera o art. 198 da Constituição e dispõe sobre a forma de contratação de agente comunitário de saúde e agente de combate à endemias. Desde a criação do Programa da Saúde da Família a contratação do agente comunitário de saúde tem gerado debates em razão das especificidades da profissão. Diante das dificuldades iniciais de contratação do agente por concurso público, em virtude da exigência de moradia no local do trabalho, a sua maioria foi contratada pelo Poder Público, mediante interposta pessoa jurídica. A EC 51 buscou resolver a questão da contratação, além de convalidar processos seletivos simplificados realizados tanto pelo Poder Público quanto pelas entidades fornecedoras de mão-de-obra.
Palavras - chave: agente comunitário de saúde Emenda Constitucional 51/2006- concurso público e processo seletivo simplificado. MP 297/2006.
I - Introdução
Em fevereiro de 2006 foi publicada a Emenda Constitucional 51 que dispõe sobre os agentes comunitários de saúde e os agentes de combate às endemias, acrescentando os §§ 4º, 5º e 6º ao art. 198 da Constituição.
A admissão de agentes comunitários de saúde no serviço público vem, desde a criação pelo Ministério da Saúde[1] dos programas de saúde da família e de agentes comunitários, gerando polêmicas e debates.
Os recursos para pagamento desse profissional têm sido transferidos, sob a modalidade de incentivo, pelo Ministério da Saúde[2] para estados e municípios que aderirem ao programa.
Em razão do caráter programático da atividade e a forma de transferência dos recursos, os municípios, incentivados pelo próprio Ministério da Saúde, passaram a contratar esses profissionais de forma temporária ou mediante convênios e parcerias com entidades privadas, principalmente com a OSCIP Organização da Sociedade Civil de Interesse Público.
Entretanto, como essa atividade integra a atenção básica, o programa deixou há muito de ter caráter temporário[3], ainda que o Ministério da Saúde continue a transferir a maioria dos recursos sob a forma de incentivo financeiro voltado para um programa que poderá ser descontinuado. Mas pela natureza permanente da atividade, os municípios e os estados passaram a necessitar desse profissional de saúde para a atenção básica, integrando, esses profissionais, os quadros do serviço público.
Contudo, por ser da natureza da atividade do agente comunitário a sua residência na comunidade[4] onde atuar, os municípios sempre tiveram dificuldades para, nos concursos públicos, exigir que o candidato, dentre outros requisitos da profissão, residisse no local de seu trabalho.
Com a regulamentação da profissão pela Lei n. 10.507, de 10.7.2002 -- que estabeleceu como exigência para o exercício da profissão a moradia do profissional na comunidade em que atuar -- isso aparentemente se resolveu.
A Lei rezava, ainda, que o exercício da profissão de agente comunitário somente poderia se dar no âmbito do Sistema Único de Saúde. Em 9 de junho de 2006, foi editada a Medida Provisória 297, revogando a Lei 10.507, ao mesmo tempo em que quase a reproduz integralmente, com algumas inovações, principalmente as referentes a criação de empregos públicos para a contratação de agentes de combate a endemias, uma vez que existe uma pendência no Governo Federal quanto à contratação desses profissionais. Lembramos, ainda, que o Decreto n. 3.189/99, que tem data anterior à lei, fixa diretrizes para o exercício da atividade.
Entretanto esse tema, até o advento da MP 297, não conseguiu ser pacificado porque sendo da natureza do agente comunitário ser ele membro e conhecedor de pessoas, hábitos e cultura de uma determinada comunidade, a moradia no local do trabalho posterior ao concurso invalidava esse requisito da profissão.
Mas esse é um tema que era controverso e não merecia guarida do Poder Judiciário quando o edital do concurso exigia do inscrito comprovação de sua moradia no local de trabalho já por ocasião de sua inscrição reforçou no Município a necessidade de se contratar os agentes por interposta pessoa jurídica ou mediante parcerias com as OSCIPs. Entendíamos que lei deveria ser alterada para esclarecer, de uma vez por todas, esse ponto polêmico. Finalmente, a MP 297, pôs um ponto final nisso ao dispor em seu art. 6º que o agente comunitário deverá residir na área da comunidade em que atuar,desde a data de publicação do edital do processo seletivo público.
Como a contratação do agente comunitário sempre foi feita pelo próprio Município, na maioria das vezes, de forma terceirizada, a polêmica em torno da terceirização continuou, tendo, no final do ano de 2005, o Ministério Público do Trabalho notificado o Fundo Nacional de Saúde -- Notificação Recomendatória n. 0013/2005 -- a suspender, a partir de 31 de dezembro de 2005, as transferências obrigatórias dos recursos da saúde aos Municípios que não tivessem realizado concurso público para a contratação desse profissional.
A medida, se implementada pelo Ministério da Saúde, levaria o caos à saúde e, reflexamente, à economia familiar e local, uma vez que por volta de 200 mil profissionais deixariam de receber os seus salários a partir de janeiro, promovendo uma verdadeira desordem no sistema de saúde municipal, principalmente, nos municípios menores, os quais atuam fortemente na atenção básica, locus de trabalho dos profissionais de saúde.
Em meio a essa discussão foi publicada em fevereiro passado a EC 51, a qual permite aos estados e municípios a admissão de agentes comunitários de saúde e de agentes de combate às endemias por meio de processo seletivo público, admitindo ainda a permanência no serviço público de agentes comunitários que tenham sido submetidos a anterior processo de seleção pública e reconhecendo vínculo de emprego de agente comunitário contratado por interposta pessoa jurídica.
II - Processo seletivo e concurso público
Emenda Constitucional 51/2006
Art. 1º O art. 198 da Constituição Federal passa a vigorar acrescido dos seguintes §§ 4º, 5º e 6º:
"Art. 198. ........................................................
§ 4º Os gestores locais do sistema único de saúde poderão admitir agentes comunitários de saúde e agentes de combate às endemias por meio de processo seletivo público, de acordo com a natureza e complexidade de suas atribuições e requisitos específicos para sua atuação.
Começamos por analisar a impropriedade do uso da expressão gestores locais do SUS uma vez que os responsáveis pela admissão de pessoal são os estados e municípios pessoas jurídicas de direito público -- não os seus servidores.
Também, na expressão gestores locais deve-se compreender os secretários estaduais da saúde e não apenas os municipais, sob pena de o estado, no exercício de sua competência supletiva para a execução de qualquer serviço de saúde (art. 17, III, Lei n. 8.080/90), ficar excluído da EC 51.
O concurso público, previsto no art. 37, II, da CF[5] é um processo de seleção pública. Falar, pois, em concurso público e processo de seleção, aparentemente, estamos nos referindo à mesma coisa. Contudo, se a EC 51 cuidou de usar a expressão processo seletivo e não concurso público para referir-se à forma de seleção pública de servidores devemos considerar que ela procurou dar um significado diferente à expressão processo seletivo, ainda mais se se considerar os pareceres que acompanharam a PEC n. 7-C, de 2003[6], hoje EC 51, e a realidade fática das contratações dos agentes comunitários pela administração pública, elementos importantes para a hermenêutica.
Lembramos que a expressão processo seletivo simplificado encontra-se no art. 3º da Lei n. 8.745/93[7], que trata da contratação de servidor temporário no âmbito da União, a qualindepende de concurso público. A Lei n. 8.745, de 09.12.93, impõe o processo seletivo simplificado para a seleção desse pessoal, prescindindo de concurso público: O recrutamento do pessoal a ser contratado, nos termos desta Lei, será feito mediante processo seletivo simplificado sujeito a ampla divulgação, inclusive através do Diário Oficial da União, prescindindo de concurso público? (art. 3º).
Há ainda o Decreto Federal n. 4.748, de 16.6.2003 regulamentando o processo seletivo simplificado o qual exige realização de prova escrita e, facultativamente, a análise de currículo, ressalvando, entretanto, a adoção, pelo órgão ou entidade, de outras modalidades de seleção.
Como seria uma contradição exigir concurso para a contratação de servidor para atendimento de situação emergencial, o processo seletivo mencionado na Lei 8.745 somente pode referir-se a seleção rápida, célere, simplificada de servidores temporários. Maria Sylvia Zanella Di Pietro[8] discorre sobre a desnecessidade de concurso nos casos de contratação de servidor temporário, a demora do procedimento do concurso público pode ser incompatível com as exigências imediatas da Administração, em caso, como exemplo, de epidemia ou outra calamidade pública. Assim, a expressão processo seletivo deve corresponder a uma espécie de concurso público, a qual deve ter rito mais célere e simplificado que o concurso, sem descuidar da obediência aos princípios da impessoalidade, isonomia, publicidade e outros.
A intenção do legislador ao introduzir no texto constitucional essa norma foi a de criar exceção a uma regra geral ou a de criar uma espécie do gênero concurso público. O concurso é regra geral e o processo seletivo uma espécie do gênero concurso, o qual conferiria mais simplicidade e agilidade à seleção pública de servidores.
O próprio parágrafo único do art. 2º da EC 51 ao convalidar anterior processo de seleção pública realizado pela Administração Pública ou por pessoa jurídica de direito privado (!) deve estar referindo-se a esses processos mais simplificados que o concurso, o que confirma a tese de que o processo seletivo tem significação diversa do concurso público, sob pena de a norma ser inócua.
A MP n. 297/2006 estabelece que a contratação de agente comunitário e de combate à endemias será precedida de processo seletivo público de provas ou de provas e títulos, de acordo com a natureza e a complexidade das atribuições e requisitos específicos para o exercício das atividades, conforme previsto na Constituição, art. 37, II e na EC 51. Vê-se que o agente comunitário e de endemias deverá ser contratado? (isso pressupõe regime da CLT) e não nomeado para cargo público, sob o regime estatutário. A União impôs a si o regime da CLT (contratual) de acordo com o art. 8º da MP 297 e passou a exigir o processo seletivo público para a contratação de agentes de endemias e comunitário.
III - Regulamentação do regime jurídico e das atividades do agente
§ 5º Lei federal disporá sobre o regime jurídico e a regulamentação das atividades de agente comunitário de saúde e agente de combate às endemias.
Quanto às atividades de agente comunitário, Já existia lei federal regulamentando a profissão quando a EC 51 foi publicada. Era a Lei n. 10.507/2002 que foi recepcionada pela EC 51, uma vez que nada existia em seu texto que a contrariasse. Somente haveria revogação da Lei pela EC 51 se houvesse incompatibilidade de regramentos. Como a EC não era incompatível com a Lei, ela continuou a ter vida no mundo jurídico até a edição da MP n. 297, de 9 de junho de 2006, que a revogou expressamente.
Quanto à regulamentação do regime jurídico dos agentes, os entes federativos sempre tiveram competência constitucional para dispor sobre o regime de seus servidores e continuam a tê-lo, pois, no nosso entendimento, a presente EC não alterou esta regra. Tanto não alterou que a recente MP n. 297/2006, em seu artigo 8º, reza que o regime jurídico é aquele que o ente federado adotar, estabelecendo-se para a União o regime da CLT.
IV - Perda do cargo ou emprego público
§ 6º Além das hipóteses previstas no § 1º do art. 41 e no § 4º do art. 169 da Constituição Federal, o servidor que exerça funções equivalentes às de agente comunitário de saúde ou de agente de combate às endemias poderá perder o cargo em caso de descumprimento dos requisitos específicos, fixados em lei, para o seu exercício." (NR)
Este parágrafo trata da perda do cargo público pelo servidor que exercer funções equivalentes às de agente comunitário de saúde ou de agente de combate às endemias quando descumprir os requisitos específicos da lei que regulamentar a atividade.
Esta regra vale não apenas para aqueles que exercem funções equivalentes, mas também, e com muito mais propriedade, ao servidor detentor do cargo ou emprego de agente comunitário ou de endemias.
Vejamos. Tanto a revogada Lei n. 10.507/2002 como a atual MP 297, fixam os seguintes requisitos para o exercício da profissão: a) moradia do profissional na comunidade em que atuar; b) conclusão, com aproveitamento, de curso de qualificação básica para a formação de agente comunitário; e c) conclusão do ensino fundamental.
De acordo com o texto acima, o servidor que exercer funções equivalentes as de agente comunitário de saúde poderá perder o cargo em caso de descumprimento dos requisitos legais. Dos três requisitos legais, dois precisam ser comprovados apenas por ocasião do concurso ou processo seletivo simplificado; somente o da moradia necessita ser comprovado periodicamente, durante o exercício do cargo ou do emprego. Assim, o descumprimento deste último requisito poderá ensejar a perda do cargo ou do emprego.
Contudo, o dispositivo, estranhamente, refere-se ao servidor que exerce funçõesequivalentes as de agente comunitário. Como isso é possível? O servidor não é agente comunitário, mas exerce atividades de agente? Se não é detentor do cargo público de agente, como o perderá? Que cargo perderá?
Para tentar aclarar, temos que: a) o servidor -- detentor de cargo ou emprego de agente -- o perderá se descumprir os requisitos legais para o exercício do cargo; b) o servidor que exercer funções equivalentes às de agente será afastado dessas funções se descumprir os mesmos requisitos, uma vez que não poderá perder seu cargo que provavelmente é outro que não o de agente.
Quanto à estabilidade do servidor agente comunitário de saúde, esclarecemos que somente servidor nomeado para cargo de provimento efetivo, em virtude de concurso público é considerado estável (art. 41, da CF).
O ocupante de emprego público em decorrência de concurso público, não adquire estabilidade no serviço público. Não é o concurso público que confere estabilidade ao servidor, mas sim o cargo efetivo provido mediante concurso. O concurso por si só não possibilita a aquisição da estabilidade. Conforme Odete Medauar[9] É a nomeação para cargo efetivo que possibilita a aquisição da estabilidade ordinária ou comum, conforme prevê o art. 41 da CF, onde figura o termo efetivo.
Assim, o agente comunitário detentor de cargo efetivo ou emprego público perderá o emprego ou o cargo quando deixar de morar na comunidade (antes da EC 51 e depois dela a situação é a mesma. Não houve inovação, uma vez que a Lei n. 10.507 já estabelecia esse requisito para o exercício da atividade e a MP 297 continua a fazê-lo).
A MP 297, em seu art. 10, estabelece regras para a rescisão unilateral do contrato de agente comunitário.
V - Contratação direta e processo seletivo
Art 2º. Após a promulgação da presente Emenda Constitucional, os agentes comunitários de saúde e os agentes de combate às endemias somente poderão ser contratados diretamente pelos Estados, pelo Distrito Federal ou pelos Municípios na forma do § 4º do art. 198 da Constituição Federal, observado o limite de gasto estabelecido na Lei Complementar de que trata o art. 169 da Constituição Federal.
O § 4º do art. 198 menciona gestores locais e estatui que eles poderão admitir agentes comunitários e de endemias por meio de processo seletivo. Aqui, o art. 2º da EC reza que após a sua promulgação, os agentes comunitários e de endemias somente poderão ser contratados diretamentepelos estados, Distrito Federal e municípios, na forma do disposto no § 4º do art. 198.
Este artigo implica em que:
a) doravante, os estados, DF e municípios somente poderão contratar diretamente agentes comunitários e de endemias mediante processo seletivo;
b) este artigo ao mencionar apenas o contrato excluiu o cargo público do processo seletivo? Emprego público não se confunde com cargo público. No emprego publico a relação entre o poder publico e o servidor é contratual; não há nomeação nem estabilidade como ocorre no cargo público. No emprego a relação é contratual. Emprego público é um posto de trabalho de quem écontratado pela CLT, preleciona Odete Medauar[10]. No mesmo sentido, Celso Antonio Bandeira de Mello[11] refere-se a emprego público como núcleos de encargos de trabalho permanentes a serem preenchidos por agentes contratados para desempenhá-los, sob relação trabalhista.
O § 4º da EC refere-se a admissão e aqui o § 2º refere-se à contratação. Pelo disposto neste artigo, somente quando se tratar de emprego publico a seleção será feita pela forma mais simplificada que o concurso. Cargo público continua a depender de concurso público de provas ou de provas e títulos, na forma do art. 37, II, da Constituição.
c) A União ficou excluída desta norma? Entendemos que o disposto neste artigo também se aplica à União. Sabemos que a União excepcionalmente contrata esses profissionais por estarem eles vinculados à atenção básica, atividade mais afeita ao município; mas, no caso da saúde indígena, por exemplo, muitas vezes a União terá de contratar esses profissionais. E ela não poderá estar fora do disposto neste artigo. Depois da edição da MP 297, que criou cargos na FUNASA para agentes de endemias e impôs o regime da CLT para a Administração Pública Federal (art. 8º) nas contratações desses profissionais, essa questão se pacificou.
Cabe, aqui, tentar esclarecer qual a intenção do legislador constitucional ao mencionar que os estados e municípios deverão contratar diretamente os agentes comunitários e de endemias. O que pretendeu o legislador?
Essa questão nos remete, novamente, conforme comentário inicial, para o início do programa de saúde da família estruturado e financiado pelo Ministério da Saúde para ser executado pelos estados e, fundamentalmente, pelos municípios, em caráter programático. Além do mais, era da natureza da formação do agente comunitário residir na comunidade onde trabalhasse fato estranho a qualquer forma de seleção de pessoal, até então.
Como na época não existia nenhuma lei dispondo sobre a necessidade de ser o agente um membro da comunidade -- isso fez com que os municípios tivessem receio de criar em seus quadros funcionais emprego ou cargo público diante, não apenas da incerteza da continuidade do programa, mas também pelo fato de ter que restringir o acesso ao concurso público de pessoas que não morassem na comunidade, fato que poderia ser impugnado judicialmente por ferir o principio da isonomia.
Isso levou os municípios a firmarem parcerias com entidades privadas sem finalidades lucrativas para conjuntamente, desenvolverem o programa de saúde da família e de agente comunitário, conforme já mencionado neste trabalho. As parcerias, no meu entendimento, eram e são possíveis, uma vez que o SUS admite a participação complementar do setor privado no sistema público (art. 199, § 1º da CF).
Ocorre que nem sempre essas parcerias previam a gestão compartilhada ou outra forma de cooperação no programa de saúde da família, mas tão somente, a contratação, via interposta pessoa jurídica, de mão-de-obra: uma terceirização de mão-de-obra, ou o fornecimento de mão-de-obra, pura e simples. Na lição de Maria Sylvia Zanella Di Pietro[12]? Tais contratos são manifestamente ilegais e inconstitucionais. Eles correspondem a uma falsa terceirização e não escondem a burla à Constituição?
Mas, mesmo sendo ilegal essa forma de contratação de mão-de-obra do agente comunitário, a mesma prosperou e grande parte dos agentes foi contratada por interposta pessoa jurídica, para exercer atividades no serviço público municipal, fundamentalmente.
Nem sempre a entidade contratante mantinha qualquer relação com a administração pública, exceto o fornecimento do profissional agente comunitário de saúde que, além do mais, por força de lei, haveria de manter relação de subordinação com o gestor público (art. 2º, da Lei n. 10.507, ora revogada pela MP 297).
Em 2002, a Lei n. 10.507 já havia resolvido a questão da moradia no local do trabalho, mas as terceirizações continuaram e o fato do seu art. 4º estatuir que o agente comunitário de saúde prestará os seus serviços ao gestor local do SUS, mediante vínculo direto ou indireto, Induziu os municípios a entenderem que poderiam manter contratos de prestação de mão-de-obra, pura e simplesmente.
Ora, os vínculos empregatícios são diretos, não existindo vínculo indireto no serviço público. Pode, muitas vezes, existir execução indireta de serviço, mas não vínculo de trabalho indireto.
Na terceirização, o que se dá é a contratação, por determinado ente, de serviços de terceiro para o desempenho de atividade-meio. No tocante à administração pública, o Enunciado 331 do Tribunal Superior do Trabalho definiu, que?a contratação irregular de trabalhador, através de empresa interposta, não gera vínculo de emprego com os órgãos da Administração Pública Direta, Indireta ou Fundacional (art. 37, II, da CF)?.
Assim, não há que se falar em prestação de serviços mediante vínculo indireto. Os vínculos são diretos entre o empregador e o empregado. A prestação de serviços é que pode ser feita mediante contrato (forma de execução indireta de serviços pela administração pública).
Antes do Enunciado 331, havia o Enunciado 256[13] que julgava ilegal a contratação de trabalhador por empresa interposta, determinando que o vínculo empregatício seria formado diretamente com a empresa tomadora de serviço,permitindo, apenas, que serviços de vigilância e limpeza pudessem ser terceirizados (Lei n. 6.019/74). Isso demonstra que nunca se admitiu o vinculo indireto nem no setor privado e muito menos no setor público que exige concurso público para admissão de pessoal em seus quadros.
Algumas atividades no serviço público podem ser executadas de forma indireta[14], o que é outra coisa. Isso na saúde é uma realidade, prevista constitucionalmente. O art. 197 da CF reza que a execução de serviços públicos de saúde deverá ser feita diretamente ou através de terceiros. Na mesma linha, o § 1 º do art. 199 também permite às instituições privadas a participação, de forma complementar, do Sistema Único de Saúde, mediante contrato ou convenio de direito público.
Por sua vez, a Lei n. 8.080/90, em seu art. 24, reza que quando as disponibilidades de serviços do poder público forem insuficientes para o atendimento da demanda da população, ele poderá recorrer aos serviços privados. Desse modo, no Sistema Único de Saúde poderá existir serviços privados, os quais complementarão os serviços públicos. Essa é uma forma de executar serviços públicos de forma indireta. O ente prestador do serviço o executa as suas expensas, com seu aparato físico e de pessoal, mediante o pagamento do preço previsto no contrato, suprindo, assim, as lacunas da Administração Pública na área da saúde.
Se a atividade, no SUS, for prestada por entidade sem finalidade lucrativa que tenha interesse em estabelecer regime de cooperação com o serviço público (e não mero contrato de compra e venda de serviço), o instrumento será o convênio, próprio para estabelecer parceria; caso contrário, o contrato se imporá, uma vez que a prestação de serviços será objeto do ajuste.
Voltando para o tema específico do agente comunitário? Profissão caracterizada? Pelo exercício de atividades de prevenção de doenças e promoção da saúde, mediante ações domiciliares ou comunitárias, individuais ou coletivas, desenvolvidas em conformidade com as diretrizes do SUS e sob supervisão do gestor local deste? (art. 3º da MP 297/2006)), algumas especificidades precisam ser ressaltadas: a) a profissão só pode ser exercida no âmbito do SUS; b) deverá haver supervisão do agente pelo gestor da saúde; c) a atividade fica submetida às diretrizes do SUS.
Mas, se o Sistema Único de Saúde permite a execução indireta de seus serviços, mediante contratação de serviços do setor privado lucrativo ou sem fins lucrativos ou mediante celebração de convênio (o qual pressupõe regime de cooperação), o programa de saúde da família, do qual faz parte o agente comunitário, também poderá ser executado de forma indireta, desde que configurada a insuficiência do serviço público e não, pura e simplesmente, o fornecimento de mão-de-obra de profissional de saúde, como o agente comunitário que, neste caso, específico, deverá ser contratado diretamente pelo poder público. A insuficiência do serviço público admite complementariedade.
Mas a questão que aqui aflora é ser a profissão de agente comunitário exclusiva do SUS. A EC 51, em seu art. 2º, ao impor a contratação direta do agente comunitário pelos estados, DF e municípios e a revogada Lei n. 10.107 ao estabelecer que o exercício da atividade do agente comunitário deveria se dar com exclusividade no âmbito do SUS, exigência mantida pela MP 297/2006, nos conduz ao entendimento de que essa atividade somente pode ser exercida no serviço público de saúde e de forma direta, não sendo admissível o regime da complementariedade prevista no art. 199, § 1º da CF e art. 24 da Lei n. 8.080/90.
VI - Convalidação de vínculo empregatício
Parágrafo único. Os profissionais que, na data de promulgação desta Emenda e a qualquer título, desempenharem as atividades de agente comunitário de saúde ou de agente de combate às endemias, na forma da lei, ficam dispensados de se submeter ao processo seletivo público a que se refere o § 4º do art. 198 da Constituição Federal, desde que tenham sido contratados a partir de anterior processo de Seleção Pública efetuado por órgãos ou entes da administração direta ou indireta de Estado, Distrito Federal ou Município ou por outras instituições com a efetiva supervisão e autorização da administração direta dos entes da federação.
Este parágrafo permite que os profissionais contratados (vínculo contratual, CLT) pelo Poder Público para o exercício de atividade de agente comunitário, na forma do disposto na lei, não precisam submeter-se a novo processo seletivo, desde que seu ingresso no serviço público tenha se dado por meio de seleção pública e o processo de seleção tenha sido realizado por órgão ou entes da administração pública direta ou indireta.
Este dispositivo nos leva a inferir que a seleção pública ali mencionada é o processo seletivo simplificado, uma vez que não faz o menor sentido convalidar concurso público. A norma deve estar se referindo aos processos de seleção mais simplificados que o concurso. E isso também confirma o entendimento de que processo seletivo público difere do concurso público.
Assim, consolida-se a admissão de servidores em emprego público realizado mediante processos de seleção mais simplificados que o concurso público.
Causa espécie o final do parágrafo que trata da realização de processo seletivo por outras instituições com a efetiva supervisão e autorização da administração direta dos entes da federação?. Que instituições seriam essas? Públicas não podem ser, uma vez que a norma refere-se primeiramente ao processo seletivo realizado por órgãos ou entes da administração direta e indireta do estado, DF e município, e depois a outras instituições e condiciona a validação dessa seleção a efetiva supervisão e autorização da administração direta dos entes da federação.
Estaria tal dispositivo reconhecendo vínculo direto com a administração pública de agentes comunitários que tenham sido contratados por interposta pessoa jurídica, fornecedora de mão-de-obra para o serviço público? Estaria buscando convalidar os contratos de trabalho firmados entre entes privados e os agentes para que os mesmos realizassem serviços no âmbito do SUS? É tão absurda a regra que custa a acreditar que seja essa a intenção do legislador constitucional.
Agentes comunitários contratados por interposta pessoa jurídica para exercer suas atividades no serviço público teriam, doravante, reconhecido seu vínculo de emprego com o ente público tomador do serviço, desde que tivesse havido efetiva supervisão e autorização de órgão da administração direta na seleção pública realizada pelo ente privado. Nesse caso, a EC 51 estaria considerando ilegais as contratações ocorridas por interposta pessoa jurídica e reconhecendo, como fazia o cancelado Enunciado 256[15] do Tribunal Superior do Trabalho, vínculo empregatício direto com o tomador do serviço.
O outro entendimento que poderia se pretender é o da hipótese de o poder público ter realizado o processo seletivo para si mesmo, mas mediante terceiro contratado para lhe prestar esse serviço específico.
Essa interpretação fica sem sentido ao se exigir a efetiva supervisão e autorização por ente da administração direta. É óbvio que a administração pública ao contratar qualquer entidade para lhe prestar um serviço (realização da seleção pública), o faz mediante o cumprimento de uma série de requisitos, dentre eles, naturalmente, a autorização da celebração do contrato, sua assinatura, empenho etc. O dispositivo, então, quando menciona outras instituições só pode estar se referindo à realidade fática dos agentes comunitários que, na maioria das vezes, realizava ou realiza seus serviços na saúde pública, mas com vínculo empregatício com entidade privada contratada pelo poder público para fornecimento desses profissionais.
Lembramos que este parágrafo estabelece que os profissionais que, na data de promulgação desta Emenda e a qualquer título, desempenharem as atividades de agente comunitário...; emprega a expressão profissional e não servidor; refere-se, ainda a desempenho de atividades de agente comunitário a qualquer título; tudo isso nos conduz ao entendimento de que a EC pretende convalidar não apenas os processos de seleção realizados pela administração pública anteriormente a sua promulgação, como também reconhecer vinculo de emprego entre o poder público tomador desses serviços com o empregado de empresa fornecedora de mão-de-obra para o serviço público desde que tenha sido realizado processo seletivo para a sua admissão.
Este parágrafo tem, então, o condão de reconhecer vínculo de emprego entre o empregado de empresa fornecedora de mão-de-obra com a entidade pública tomadora dos serviços, desde que esses profissionais tenham sido contratados mediante processo seletivo, autorizado e supervisionado por órgão da administração pública direta, não se admitindo entes da administração indireta como autarquias e fundações. E esses profissionais precisariam estar, na data da promulgação da EC, no exercício de suas atividades.
Resta, ainda, esclarecer que os convênios e outras parcerias havidas entre ente público e ente privado para o desenvolvimento conjunto do programa de saúde da família (treinamento, educação continuada, avaliação etc.) não estão abrangidos por este parágrafo, que no nosso entendimento somente refere-se à contratação de mão-de-obra de agente comunitário de saúde ou de endemias. As verdadeiras parcerias ou a participação complementar do setor privado no SUS nos termos do art. 24 a 26 da Lei n. 8.080/90, não estão contempladas.
A MP 297, em seus arts. 9º, parag. único e 12 tratam do tema. O primeiro ao determinar que compete aos estados, DF e municípios certificar, em cada caso, a existência de anterior processo de seleção pública, para efeito da dispensa referida no parág. único do art. 2º da EC 51. No art. 12, cuida dos profissionais que desempenhem atividades de agentes de endemias mediante anterior processo de seleção pública efetuado pela FUNASA ou por outra instituição pública, sob supervisão efetiva da FUNASA, os quais, não precisarão submeter-se a novo processo público de seleção. O Ministro da Saúde e o do Controle e da Transparência deverão instituir comissão com a finalidade de atestar a regularidade do processo seletivo.
No art. 17, a MP permite que os profissionais mencionados na EC 51 que exerçam atividades próprias de agentes comunitários ou de endemias, desde que vinculados diretamente aos gestores locais do SUS ou a entidades da administração indireta, poderão permanecer no exercício destas atividades até que seja concluída a realização de processo seletivo publico pelo ente federativo.
Como conseqüência deste dispositivo especifico, temos:
a) Convalidação dos processos seletivos realizados pela Administração Pública, em data anterior à publicação da EC 51, para a contratação de agentes comunitários, desde que este profissional esteja em efetivo exercício no serviço público e cumpra todos os requisitos mencionados na MP 297;
b) Manutenção dos ajustes firmados entre o poder público e o setor privado para fornecimento de mão-de-obra de agente comunitário, até que seja concluída a realização de processo seletivo público. Como não menciona nenhuma data, mas pela dicção do artigo até que seja concluída a realização de processo seletivo público pressupõe-se que os mesmos já estejam sendo realizados em decorrência da EC 51;
c) Criação de emprego público para admissão dos profissionais que trabalham no serviço público, mas com vínculo de emprego com entidade privada (art. 14 da MP 297); O ente público deverá respeitar o limite de pessoal imposto pela lei de responsabilidade fiscal e as necessidades do Programa. Os empregos ou cargos públicos deverão ser criados por lei que deverá dispor sobre os demais aspectos inerentes à atividade.
d)Após a realização do processo seletivo os profissionais que não lograrem sucesso não mais poderão permanecer no exercício da função, devendo ser cessados os ajustes havidos anteriormente.
VII - Conclusões
1. O agente comunitário somente poderá ser contratado no serviço público, mediante processo seletivo;
2. Agentes comunitários, por ocasião da seleção publica, deverão comprovar que: completaram o ensino fundamental; concluíram, com aproveitamento, o curso de qualificação básica de formação de agente comunitário de saúde; e residem na área em que vão atuar.
3. O curso de qualificação ainda quase inexistente em nosso país -- poderá ser dado aos agentes que lograrem sucesso na primeira fase da seleção e, após concluírem o curso, se submeterão a uma segunda prova. Durante o período de freqüência ao curso, o seu vínculo com o serviço público deverá ser temporário.
4. Os agentes comunitários que deixarem de comprovar periodicamente a sua moradia na comunidade onde atua, perderá o emprego ou cargo. Isto deverá constar do edital e do contrato de trabalho.
5. Os agentes comunitários contratados pelo poder público mediante processo seletivo, antes da EC, e em efetivo exercício profissional na data da promulgação da EC, não precisarão submeter-se a novo processo de seleção, os quais estão convalidados pela EC, desde que preencham as condições previstas na MP 297/2006.
6. A contratação (anterior à EC) de agente comunitário por interposta pessoa jurídica para a administração pública formou vínculo de emprego com a administração pública, desde que tenha havidoprocesso de seleção e que o mesmo tenha sido por ela (administração pública direta) autorizado e supervisionado e o profissional esteja em efetivo exercício no serviço público na data da promulgação da EC 51. A Administração Pública haverá de certificar esse processo.
7. Doravante, os agentes comunitários somente poderão ser contratados diretamente pela administração pública direta ou indireta.
8. Os Municípios quando forem criar emprego público, mediante lei, para admissão de agente comunitário, devem regular um pouco mais a questão da moradia na comunidade. Seria oportuno o secretário municipal dividir seu território em regiões de saúde (art. 6º, § 2º da MP 297) e explicitar que o processo seletivo será para esta ou aquela região de saúde e exigir que o candidato comprove a sua residência na região onde irá atuar por ocasião do processo de seleção e periodicamente, se for contratado. Isso deve ficar estabelecido no edital e no contrato de trabalho. E a comprovação da moradia deverá se dar por ocasião da inscrição no processo de seleção.
9. Quando se tratar de emprego público (contrato CLT), a seleção será mediante processo seletivo simplificado e a garantia contra a demissão unilateral será a prevista nas leis estaduais e municipais que dispuserem sobre o emprego público (na Administração Pública Federal, Lei n. 9.962, de 22.2.2000 ? só aplicável à administração pública federal).
Por fim, não poderíamos deixar de comentar sobre o flagrante casuísmo da EC 51 que pretende amparar situações inconstitucionais e ilegais, sendo inoportuna, nada contribuindo para o aprimoramento da administração pública e da moralidade administrativa, podendo ser argüida a sua inconstitucionalidade por ferir o princípio da igualdade e por admitir que vínculo de emprego com ente privado seja transposto para a Administração Pública. A situação do agente comunitário precisava ser resolvida, mas não dessa forma.
Lenir Santos - 2006
[1] Portaria MS n. 1.886/97.
[2] Portaria MS 2.474/2004 - Dispõe sobre o financiamento do Programa de Agente Comunitário de Saúde.
[3] Vide Portaria MS n. 648, de 28.3.2006 que aprova a Política de Atenção Básica e revê as diretrizes e normas para a organização da Atenção Básica para o Programa de Saúde da Família e Programa de Agentes Comunitários de Saúde.
[4] O agente Comunitário de Saúde é um sujeito que reside na comunidade onde irá atuar. Essa pessoa que deverá freqüentar curso de qualificação básica para a formação de agente comunitário é membro daquela comunidade, conhecendo hábitos, cultura, costumes, sendo-lhe muito mais fácil estimular e promover ações que fortaleçam os elos entre o setor saúde e outras áreas que permitam promover a qualidade de vida daquela comunidade.
[5] A investidura em cargo ou emprego público depende de aprovação prévia em concurso público de prova ou de provas e títulos, de acordo com a natureza e a complexidade do cargo ou emprego, na forma prevista em lei, ressalvadas as nomeações para cargo em comissão declarado em lei de livre nomeação e exoneração? .
[6] PEC 7-C proposta do Dep. Mauricio Rands.
[7] Não se pode perder de vista ainda, que o STF, no Mandado de Segurança n. 21.322, de 03.12.92 e no exame da Questão de Ordem em Ação Cautelar n. 200.1-SP, de 12.05 vem discutindo o tema processo seletivo e concurso público? Se são ou não equivalentes. Provavelmente, a EC 51 deverá ser objeto de consideração daquela Corte na discussão da questão.
[8] Direito Administrativo - 12ª Edição, Editora Atlas, 1999, pág. 425.
[9]Direito Administrativo Moderno, Editora RT, 9ª. Edição, 2005 Pág. 310.
[10], Conf. Obra citada. Pág. 316.
[11] Curso de Direito Administrativo
Malheiros Editores, 14ª. Edição, 2002, pág.
[12] Parcerias na Administração Pública, editora Atlas, 3ª edição, ano 1999, pág. 167.
[13] Esse Enunciado foi cancelado pela Resolução 121/2003.
[14] O Decreto Federal n. 2.271, de 7.7.97 trata da execução indireta de serviços pela Administração Pública Federa e, estabelece quais atividades são passíveis de serem executadas, preferentemente, por execução indireta.
[15] Enunciado 256, do Superior Tribunal do Trabalho: salvo os casos de trabalhos temporários e de serviço de vigilância, previstos nas Leis ns. 6.019, de 3.1.74 e 7.102, de 20.6.83, é ilegal a contratação de trabalhadores por empresa interposta, formando-se o vínculo empregatício diretamente com o tomador do serviço? (Cancelado pela Resolução 121/2003).