Dia destes estava eu fazendo uma exposição num evento estadual de secretários municipais. Seguiu-me na fala um palestrante ministerial da saúde de quem me considero amigo, mesmo tendo, por vezes posições divergentes.
Eu falara, como tenho feito nos últimos 20 anos, que existe uma gestão temerária no Ministério da Saúde onde se “portarifica” (legisla-se por portarias) contra a Constituição e Leis. Portarias concebidas, com muita transpiração, entre os obreiros dos vários escalões sempre com retíssimas intenções. Quando se trata de descentralização e financiamento é lugar comum os negociadores alegarem em suas intransigências que “eles” não deixarão que seja de forma diferente. “Eles” quem?
Meu amigo ao expor, a seguir, não perdeu a chance de, cordialmente, “tentar” corrigir-me. Sua frase lapidar: “quase tudo que você diz que é ilegal foi sempre decidido tripartitemente entre Ministério da Saúde e Secretarias Estaduais e Municipais de Saúde, no fórum da CIT – Comissão Intergestores Tripartite. As decisões, ditas ilegais, têm a impressão digital das três esferas de governo.” Não quis contestá-lo de público, no debate a seguir, por não ser oportuno. Faço-o neste texto para que não se propague este equívoco a ponto de parecer uma verdade.
Vamos lá. Afirmo e reafirmo, de pé, sentado, por escrito, mudo ou de viva voz que a administração do Ministério da Saúde, mesmo depois da CF e da criação do SUS, continua essencialmente absolutista e autocrática, com honrosas e poucas exceções. Estados e Municípios muitas vezes apenas são chamados a ser coadjuvantes em decisões periféricas, e menos na essência que seria o cumprimento puro e simples da lei. Diga-se inclusive que inúmeras portarias nem são discutidas na Câmara Técnica e muito menos na CIT. Mesmo as discutidas, muitas vezes terminam com a voz do Ministério da Saúde: “será assim e não iremos discutir mais.”
Tomemos um exemplo emblemático o tema “financiamento da saúde” que vivo abordando a partir das ilegalidades contumazes. Única alternativa possível de pacto interfederativo entre entes públicos, é aquele que seja do cumprimento da constituição e lei. Não é lícito, nem legal, reunirem-se entes públicos, formal e rotineiramente, com fórum próprio, a CIT, para decidirem como não cumprirão a lei. Só se podem fazer combinações interfederativas para clarear e explicitar a lei, caso contrário, passa a ser uma pactuação de delinqüências. Seria o acerto entre entes públicos de como descumprirão a lei. Só se pactua regulação nova (criação ou modificação de leis a serem propostas ao legislativo) ou detalhamentos da regulação já existente. Jamais regulação contrária ao bloco de constitucionalidade, por mais pleno de boas fé e intenção.. Mais: não se discute assinatura de acordo e jeitinho para cumprir a lei, pois não há nenhuma possibilidade de alívio ou atenuação para descumpri-la. Extremamente triste que, depois de 20 anos da CF, os três entes federados acordando e assinando combinações eivadas de ilegalidades no seu financiamento... e isto tendo que ser visto como conquista e avanço. Seria isto possível? Não é de lei de ontem, mas da Constituição de 1988 e da Lei Orgânica da Saúde de 1990! Pior: sob os olhar (vendados para isto!) do judiciário, ministério público, tribunal de contas, controladoria, denasus!!!
O atual financiamento federal na saúde continua de prática ilegal desde a CF. Jamais poderia permitir que imputassem as ilegalidades do financiamento federal da saúde à corresponsabilidade de Estados e Municípios se o limite dado pelo Ministério da Saúde já é o da ilegalidade. “Mais que isto não vão permitir! Para conseguir estes avanços já estamos enfrentando a vontade “deles”.” Seria ingenuidade achar que Estados e Municípios, por aquiescerem com inconstitucionalidades e ilegalidades do Ministério da Saúde , concordem, gostem e ainda sejam igualmente responsáveis! Têm a responsabilidade da conivência do mal acordo, mas sob vara! “Ou isto ou nada ou pior!”
Não quero falar daqueles abnegados e bem intencionados interlocutores do Ministério da Saúde que fizeram e fazem esforços de negociação amplamente discutido com a representação de Estados e Municípios. Quero falar é do espírito básico que reinou em todos os acordos seqüenciais desde 1991 até agora. Se perguntado QUEM FORAM as pessoas ou secretarias, ou diretorias que impediram formalmente que se cumprisse a legislação, possivelmente será uma resposta vazia. Ninguém é capaz de identificar. São sempre “eles, deles, para eles, por eles! “
Vejamos no detalhe o que está prescrito na CF e na LOS e de memória comparemos com o que acontece! Um legal, virtual e um ilegal, que é o real.. Temos princípios fundamentais do financiamento explicitamente descumpridos em 20 anos. Citemos alguns deles: o Ministério da Saúde em nenhum dos anos pós EC-29 cumpriu suas responsabilidades do quantitativo e do distributivo do financiamento da saúde; os recursos não são distribuídos segundo a lei 8080 desde 1990 (50% por quociente populacional e 50% pelos critérios combinados do perfil demográfico e epidemiológico; rede; produção; participação financeira; plano de investimento (que plano? que investimento?) etc.; nem 100% pelo quociente populacional (lei 8142); nem 15% direto para os municípios para atenção básica per capita (EC-29-ADCT 77); nem recursos repassados de forma regular e automática; nem transferência no mínimo 70% a municípios e o restante a estados; nem a obrigatoriedade de gastar o dinheiro segundo plano de saúde ( o do MS 2008-2011 passou pelo CNS no final de 2009, só depois de muita pressão); nem obrigatoriedade do Ministério da Saúde oferecer cooperação técnica e financeira aos municípios para efetivar por completo a descentralização...etc. etc.
Pergunto: o Ministério não faz nada disto por decisão tripartite? Estados e Municípios decidiram com o Ministério da Saúde que as três esferas de governo iriam delinqüir descumprindo constituição e lei? Não se pode ser ingênuo demais. Estados e municípios jamais tiverem responsabilidade nesta decisão pois estariam decidindo contra seus próprios interesses de co-responsáveis constitucionais pela ação descentralizada o que não pode ser feito sem transferências financeiras legais em quantidade e forma. Concordaram com imposições autocráticas como que “enfeitando corda de condenado à forca!” É hilário ter que ouvir a argumentação que pelo menos está melhorando a ilegalidade! E ainda desqualificam aqueles que mostram isto numa crítica acerba como se fossem do mal e sempre do contra!. Além disto passou-se a exigir de parceiros que comemorem situações onde se está um pouquinho menos ilegal... Não existe meio legal, meio gol, meia ponte, meio honesto, meio grávida etc.
A Estados e Municípios, qualquer melhora neste quadro, como por exemplo: transformar caixinhas explícitas em caixinhas implícitas com a mesma lógica de dinheiro carimbado, é colocada por negociadores, como o possível. Possível decidido por quem? O Ministro da Saúde sabe disto? O Vice-Ministro participa disto? Os corresponsáveis por Secretarias, Diretorias, Fundo, Procuradoria do Ministério, DENASUS sabem que estas novas propostas, como as práticas anteriores, continuam sendo ilegais e inconstitucionais? Tenho o direito de duvidar que estas pessoas participaram ativamente desta decisão. Seria temerário eu imaginar que os o primeiro escalão do Ministério saiba destas ilegalidades e determinem que continuem sendo cometidas!Acho que é hora do CONASS e CONASEMS se colocarem firmemente contra estes descumprimentos da lei a pena de amanhã, como hoje já dizem, serem imputados formalmente de culpa no mínimo por conivência ou por omissão. Se não se reage, não se protesta, nada se diz... pode-se considerar aquiescente a esta situação. Já dizem de público que as ilegalidades do Ministério da Saúde têm as impressões digitais de Estados e Municípios.
A primeira pergunta a se fazer ao MINISTRO é se ele tem ciência de que em seu nome e sob sua assinatura em miríades de portarias estão sendo cometidas inconstitucionalidades e ilegalidades. Os responsáveis nunca são nominados. Apenas se diz: isto “eles não permitirão!” Eles quem? Quase posso imaginar que o alto escalão do Ministério da Saúde será capaz de dizer: nunca soube disto!!!
Este poderia ser o grande presente dos 20 anos da Lei 8080 e 8142: seu cumprimento. Quando comemoraram-se em 2008 os 20 anos de SUS, referia-se a uma data média do marco constitucional. Neste ano de 2009 comemoramos 46 da fecundação do SUS na IIIa. Conferência Nacional de Saúde. Em 2010 os 20 anos da Lei Orgânica. Em 2013, os 20 anos da primeira tentativa histórica de se ter a ousadia de cumprir e fazer cumprir a lei, que ao invés de aprofundada foi abortada. Tão ousado era o desafio de cumprir a lei que logo a seguir a boca de pito voltou a ser torta, espero que não em definitivo! Os moldes INAMPIANOS continuam imperando: desconcentração de tarefas para prestadores públicos, como se privados fossem!
Constituição e Lei... ora a Lei! ora elas!