Com esse titulo – Você pode me ouvir, Doutor – foi lançado no ano passado um livro que trata da relação médico-paciente. Um livro de rara sensibilidade com prefácio de Adib Jatene[2]. Ao ler a obra fiquei a pensar no modelo de saúde pública que o SUS contempla. Um sistema que pretende garantir ao cidadão serviços de saúde de qualidade que garanta a integralidade da assistência à saúde.
Ao refletir sobre a garantia de serviços de saúde integral, de acesso universal e igualitário, descobrimos o quão devedor é nosso serviço de saúde. Hoje mesmo, conversando com uma jovem dona de uma banca de jornal, ela me dizia que ao comprar a sua casa própria, abriu mão de todas as prestações possíveis, dentre elas, a do plano de saúde. Como seu filho pequeno teve um problema ortopédico, precisou ir nos serviços de saúde do bairro em que mora e teve muitas dificuldades para ser atendida pela falta de médico e quando o foi, o médico mal a olhou. Se ele tivesse que identificá-la por qualquer motivo não o saberia porque esteve com ela mas não a viu. Este fato a fez considerar se não deveria voltar a ter um plano de saúde nem que fosse apenas para seus filhos. E a cidade do interior em que mora essa jovem senhora é uma das cidades mais ricas do país, com uma alta renda per capita.
Da falta de médico à falta de humanismo no atendimento, o sistema de saúde brasileiro vai mal como um todo, tanto o sistema público e como o sistema privado. A reclamação da cidadã centrava-se na ausência do serviço, do servidor público médico e da sua falta de profissionalismo, humanismo, alteridade. Atendimento humanizado passou a ser artigo de luxo que não se encontra em quase nenhum sistema.
No prefácio do livro em referência, o Dr. Jatene sabiamente diz: Apesar dos avanços científicos e tecnológicos, o homem não mudou. Continua como antes diante da doença, necessitando antes de tudo confiar em quem o trata. Essa confiança que o faz entregar-se sem reservas só pode ser confrontada com competência e dedicação. O médico não pode permitir que as máquinas o substituam. Não pode limitar o tempo da consulta, refugiar-se na solicitação de exames e encurtar a anamnese como se esta pudesse ser substituída por imagens.
De fato, vivemos uma era em que as relações humanas se deterioram vertiginosamente, com profissionais de saúde, em especial os mais jovens, se voltando, cada vez mais, para a competição, considerada uma qualidade. Quem é competitivo, é elogiado. Só que na área da saúde não se pode esquecer que na frente de um médico, do outro lado da mesa, na outra cadeira, existe um ser humano que procura o médico como se ele fosse um oráculo capaz de lhe dizer palavras mágicas para minorar o sofrimento humano.
O SUS tem políticas de saúde voltadas para a humanização dos serviços. Mas haverá humanização nos serviços de saúde quando falta médico, sem falar da atenção, solicitude, cortesia tão importante para o inicio de uma relação de cura ou amenização do sofrimento?
Há humanismo num sistema de saúde que marca o mesmo horário e dia para todos os pacientes? Todos devem chegar às 7h da manhã, ficando alguns a esperar durante mais de quatro ou cinco horas?
Afora quando os desacertos nos diagnósticos atormentam a vida do paciente, fazendo-o peregrinar por dias a fio sem solução. As relações humanas parecem cada dia mais esgarçadas, sem que as políticas públicas e os projetos de humanização dos serviços aconteçam realmente.
[1]Coordenadora do Instituto de Direito Sanitário Aplicado – IDISA; Coordenadora do Curso de Especialização em Direito Sanitário da UNICAMP-IDISA; ex-procuradora da UNICAMP.
[2]Você pode me ouvir, Doutor? Organizadores: Alvaro Jorge Madeiro Filho e João Macedo Coelho Filho. Saberes Editora: Campinas, 2010.