Em agosto de 2008, a Comissão sobre Determinantes Sociais da Saúde concluiu seu relatório com três recomendações básicas para diminuir os efeitos das desigualdades sociais na saúde: investir em políticas eficientes de desenvolvimento, serviços e educação; distribuir mais equitativamente o poder, o dinheiro e os recursos; e oferecer cobertura médica universal. Na abertura da 65ª sessão da Assembleia Mundial da Saúde, em maio de 2012, a Diretora Geral da OMS defendeu a generalização da cobertura universal da atenção médica como “a expressão máxima da justiça”, em especial frente à crise fiscal que vive a Europa e os Estados Unidos. No início deste ano, ao assumir a direção da OPS, sua nova titular também se comprometeu a promover a cobertura universal de saúde.
Essa diretriz tem feito parte da agenda política dos organismos e conferências internacionais dos últimos anos, entre as quais, a Conferência Mundial sobre Determinantes Sociais da Saúde (Rio de Janeiro, 2011); a Reunião de Alto Nível da Assembleia Geral [da OMS] para Eliminar o HIV e a Aids (Nova Iorque, 2011); a Reunião de Alto Nível da Assembleia Geral sobre Prevenção e Controle das Doenças Não Transmissíveis (Nova Iorque, 2011); e a Conferência sobre Desenvolvimento Sustentável (Rio de Janeiro, 2012).
O que o Direito Sanitário tem a dizer a respeito?
Várias coisas. Uma delas, no entanto, me parece uma premissa irrecusável: é a forma como a sociedade concebe a assistência médica que determina a dimensão jurídica e institucional com que ela é prestada aos cidadãos.
Até muito recentemente, em termos históricos, a assistência médica era entendida como ato de caridade. Quando o desenvolvimento dos modos modernos de produção capitalista transformou a pobreza em problema social, a presença do Estado se fez necessária para minorar o sofrimento das massas urbanizadas e a assistência médica passou a ser organizada como parte de sistemas de proteção social, no âmbito dos novos estados nacionais.
A forma como a assistência médica foi organizada no âmbito desses sistemas – inclusive como se institucionalizou – dependeu do modelo de proteção social adotado e teve a ver com a concepção de cidadania que a sociedade tinha no momento histórico e político em que esses sistemas se conformaram ou reformaram.
Para Sônia Fleury e Assis Ouverney[2], cada sociedade, em suas lutas históricas, constrói suas modalidades de proteção social e sua condição concreta e singular de cidadania. Se a sociedade entende que a assistência médica para quem não pode pagar por ela é uma questão de caridade, isso evidencia um conceito de cidadania que eles denominam de ‘invertida’, e o modelo de proteção social que se constrói é baseado no assistencialismo, focalizado, dependente da filantropia para sua organização e financiamento e, como ação social e do Estado, residual. Alguém acredita que é possível alcançar cobertura médica universal com caridade e filantropia?
Os países que entendem que a assistência médica é um benefício mediante pagamento prévio, isto é, de caráter securitário, organizam sistemas como o que tínhamos no Brasil (o antigo INAMPS), que sobrevivem na forma de planos e seguros privados de saúde. Ainda que baseados em princípios de solidariedade – os sãos pagam pelos doentes, em benefício de todos –, a assistência médica, nesses sistemas, é um privilégio, uma vez que só os filiados a eles têm acesso. O benefício a que têm direito, em decorrência, é proporcional à contribuição paga. Eles resultam de uma concepção de cidadania que Fleury e Ouverney chamam de ‘cidadania regulada’.
É possível obter cobertura universal com um sistema desses, no qual só têm acesso à assistência médica aqueles integrados aos mercados de trabalho e consumo?
Cobertura universal só é possível com cidadania universal, quando a assistência médica não é ato de caridade, privilégio ou benefício em um contrato, mas um direito – e um direto de todos e a ser garantido pelo Estado, como manda a Constituição.
[1]Médico, especialista em Saúde Pública e em Direito Sanitário. Pesquisador-colaborador do Programa de Direito Sanitário da Fundação Oswaldo Cruz (Prodisa/Fiocruz). Brasília, DF
[2]FLEURY, Sonia e OUVERNEY, Assis Mafort. Política de Saúde: uma política social. In: GIOVANELLA, Lígia. et al. [orgs.]. Políticas e Sistema de Saúde no Brasil. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2008. p. 23-64.